sábado, 21 de janeiro de 2012

O mundo da forma


A interpretação da obra de arte levanta problemas que, para Focillon, se apresentam sob o aspeto de “contradições quase obsessivas” (Focillon, 1943: 11). Se, por um lado é uma tentativa de aproximação ao único, ao mesmo tempo, faz parte de um sistema de relações complexas. Resulta de uma atividade independente, traduz uma imaginação superior e livre. A obra de arte é o reflexo das energias das civilizações e, ao mesmo tempo, matéria e espírito, forma e conteúdo.
Definir o que é uma obra de arte é uma questão que alimenta discussões ao longo da história. Referindo Hauser (1998), uma obra de arte é um desafio; não a explicamos, ajustamo-nos a ela. Ao interpretá-la, fazemos uso dos nossos próprios objetivos e esforços, dotamo-la de um significado que tem a sua origem nos nossos modos de viver e de pensar. Para Focillon, quem se dedica a defini-la, qualifica-a sempre em conformidade com as exigências da sua natureza e a própria especificidade da sua investigação (Focillon, 1943). Os que a executam, quando se detêm a considerá-la, posicionam-se num plano diverso daqueles que a comentam e, mesmo quando utilizam os mesmos termos, fazem-no segundo diferentes sentidos. Já quem a frui é, no seu entender, o mais sensível e o mais entendedor, ama-a por si mesma; crê alcançá-la, possuí-la na sua essência – e envolve-a na teia dos seus próprios sonhos.
A obra de arte imerge na motilidade do tempo, pertence à eternidade. Focillon descreve-a como particular, local, individual, uma testemunha universal. Ilustra a história, o homem e mesmo o mundo; imprime na história uma ordem que não se deixa dominar.  Acumula-se em torno da obra de arte a vegetação luxuriante com que a decoram os seus interpretes, por vezes ao ponto de a esconder totalmente. E, no entanto, faz parte do seu ser, acolher todos estes imaginários. Como ele próprio afirma: “é um aspeto da sua vida imortal, do seu inesgotável interesse” (Focillon, 1943: 12).
Para se atingir a verdade pura e verdadeira da obra de arte, Focillon propõe o seu isolamento temporário. Para termos a oportunidade de aprender a vê-la realmente, devemos despi-la de todos as significações, simbologias, contextos, enfim, de todas as atribuições que lhe são dadas. A primeira conclusão a retirar é que, segundo o autor, a obra de arte é medida do espaço, é forma, e é isso que se deve logo considerar.  (Focillon, 1943: 12). Toda a atividade se deixa definir na medida em que toma forma, em que escreve a sua curva no espaço e no tempo, mas também a vida age essencialmente como criadora de formas. “A vida é forma, e a forma é o modo de ser da vida” (Focillon, 1943: 12). De resto, a própria natureza não existiria se não houvessem relações que ligam as formas. O mesmo acontece com a arte. As relações formais numa obra e entre as obras constituem uma sequência, uma metáfora no universo.
A própria Natureza é sublime na criação de formas. Segundo Focillon, a vida orgânica é uma fonte eterna de inspiração. Desenha espirais, orbes, meandros, estrelas, formas que, quando intervêm no espaço da arte e nas matérias que lhe são próprias, adquirem uma nova semântica, geram sistemas absolutamente únicos e inesperados. A este propósito argumenta:

“Seremos sempre tentados a procurar para a forma um outro sentido que não o dela própria, e a confundir a noção de forma com a de imagem, que implica a representação de um objeto, e sobre tudo com a de signo. A partir do momento em que o signo adquire um valor formal relevante, este valor age fortemente sobre o valor do signo como tal, podendo esvazia-lo, ou desviá-lo, conduzindo-o para uma nova vida” (Focillon, 1943: 12).

Como vimos, um mesmo signo pode ter diferentes significados. A forma apresenta-se como um molde vazio onde o homem vai jorrando, sucessivamente, matérias, adquirindo um novo significado. Enquanto o signo representa algo, a forma não tem mais que o significado para além de si própria. A forma tem um sentido, mas pertence-lhe totalmente; tem um valor pessoal e particular que não devemos confundir com os atributos que lhe impomos (Focillon, 1943). Estamos então, no terreno da autonomia da forma, para circunscreve-la quase de imediato, à imposição semântica.

A obra de arte como metamorfose da forma

Para o autor, a obra de arte só aparentemente é imóvel. Na realidade, a obra de arte nasce de uma alteração e é a preparação para outra – move-se e transforma-se.
Exemplos destas metamorfoses são os esboços. O esboço dá vida à obra-prima: “vinte experiências, recentes ou quase, entrelaçam-se por detrás da presença bem definida da imagem” (Focillon, 1943: 17). Segundo o autor, os esboços são parte fundamental da construção da obra de arte.
Outros exemplos destes movimentos são as combinações geométricas da decoração muçulmana. Podem ser interpretadas de mais que uma maneira, segundo os cheios, segundo os vazios, segundo os eixos verticais ou diagonais, cada uma delas esconde e revela o segredo e a realidade de diversas possibilidades.
Nem mesmo a forma como o corpo do homem e da mulher são retratadas na pintura e escultura escapam a estas metamorfoses. Nestes registos artísticos, é utilizado o entrelaçamento formal que utiliza o corpo humano como elemento de apoio e o conduz para um jogo de simetrias, contraposições e alternâncias.

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